Entrevista - "Os esqueletos falam"

A antropóloga forense Eugénia Cunha gostaria de dar uma cara a D. Afonso Henriques. Professora catedrática na Universidade de Coimbra, traça as linhas de uma vida que a coloca diariamente em contacto com a morte. Gratificante é a devolução da identidade a quem a perdeu.


O que é a antropologia forense?


A antropologia forense é a aplicação da antropologia física à parte legal. O antropólogo forense trabalha no âmbito das ciências forenses, das ciências médico-legais. Os seus objectos de trabalho são, sobretudo, os ossos humanos. Esses ossos humanos podem estar secos, mumificados, saponificados, em vários estados de preservação.
Os esqueletos podem ser de um ou mais indivíduos e o que se tem de fazer é tentar devolver a identidade àqueles restos humanos. O objectivo é atribuir um nome a A, B e C. Para além disso, contribui-se para o conhecimento da causa da morte.



Esses restos mortais ganham quase que uma nova vida.


Recuperam a identidade. De outro modo ficariam para sempre completamente anónimos. A antropologia forense pode dar um contributo em termos de sociedade porque as famílias andam à procura de determinadas pessoas. Pode dar-se um bem-estar a essas famílias.


Os antropólogos forenses movem-se pela ideia de devolver a dignidade?


É a aplicação de uma ciência que tem resultados práticos. Para uma pessoa pragmática como eu, ao fim de tantos anos de investigação e ao aplicar as técnicas de investigação, consigo determinar o perfil biológico, dizer se era um homem ou uma mulher; se era uma criança, um adolescente ou um adulto; se era um caucasiano, africano ou asiático; se era alto ou baixo; se teve alguma doença que deixou vestígios nos ossos; se tinha algum problema na locomoção ou se tem alguma marca de intervenção cirúrgica. Com todos esses dados consigo identificar. Não há dois esqueletos iguais.


Os restos mortais falam?


Os esqueletos falam, tem é que se saber descodificar o que lá está.


De que forma? Como é o vosso processo de trabalho?


As duas grandes questões científicas a que queremos responder são a identidade e a causa da morte. Depois há uma série de etapas, desde a recuperação dos restos humanos no local, à ida para o laboratório e toda uma sequência de perguntas a que devemos responder. Logo que os ossos estejam prontos para serem analisados, faz-se a primeira pergunta: "É um osso?". Pode não ser. Depois a segunda: "É humano?". Em 25 por cento dos casos são ossos de animais. "Se é humano, é um caso arqueológico?", como uma população medieval ou romana ou será que é um caso de alguém que morreu nos últimos 15 anos? Nesta última hipótese, trata-se de um caso forense.


Nos últimos 15 anos?


É o tempo da prescrição. Para além disso, não há consequências legais em Portugal. Se o tempo decorrido desde a morte implicar uma análise, vamos saber quantos indivíduos estão presentes, porque podemos ter 206 ossos e um indivíduo e 206 ossos e 206 indivíduos. Uma vez individualizados o A, o B e o C, vamos fazer os seus perfis biológicos. Vamos dizer que o A era um homem que morreu entre os 20 e os 30 anos, caucasiano e tinha uma estatura entre 1,60 metros e 1,70 metros, por exemplo. Fazemos o mesmo para os restantes e pode acontecer que tenham todos os mesmo perfil biológico.


Ainda não identificámos ninguém, só lançámos um perfil biológico. Vamos então à lista de desaparecidos e ver quantos têm aquele perfil biológico. Para ver qual deles é, analisamos factores de identidade e individualização, como saber se partiu uma perna, se tinha perda de dentes e tinha ficha dentária médica. Comparamos os dados do esqueleto do exame pós mortem com exames que eventualmente existam ante mortem.



Já ficou com algum conjunto de ossos por identificar?


Com muitos. Trabalho em antropologia forense há dez anos e há muitos por identificar porque como é um trabalho comparativo tenho de ter dados ante mortem. Acha, por exemplo, que os sem-abrigo têm registo dentário para comparar e que alguém se vai queixar do desaparecimento de um sem-abrigo?


Que sentimento fica?


Há várias situações. Há relativamente pouco tempo identifiquei um corpo. Demorou alguns meses e quando consegui o pai disse que não queria saber dele, porque ele tem de ir lá buscar os restos e tem de pagar o funeral.


Depois há os casos bem sucedidos.


É extraordinariamente gratificante uma pessoa contribuir para um bom desenlace de um caso, para que as famílias saibam onde está o A, o B e o C. Um dos primeiros casos fortes que fiz, já há uns anos largos, foi o do massacre de Ambriz, em Angola. Vários indivíduos portugueses foram lá passar férias e foram mortos. Depois trocaram-lhes a identidade. Já trabalhei em casos que envolveram erros de identificação nos cemitérios, em que a placa que devia estar em A, por qualquer motivo, foi parar a B e a partir daí temos duas famílias na mesma campa.


O que se faz nesses casos?


Tem de se fazer exumações e identificar, já me aconteceu isso num talhão inteiro. Também já me aconteceu ir para uma vala comum procurar um indivíduo e devolvê-lo à família, em Timor. São situações muito variadas, há crimes de homicídio bastante violentos mas talvez o perfil mais frequente em Portugal seja o dos indivíduos idosos que se perdem e que depois aparecem meio ano ou um ano depois, esqueletizados e vestidos.


Que casos a marcaram?



Marcou-me o massacre de Ambriz, em Angola, por exemplo. Há outros casos que marcam mas não queria falar deles, como o das vítimas de Santa Comba Dão, que é muito recente. Há um caso que tenho em mãos agora, que também me marcou de alguma maneira mas que ainda está em investigação. Foi um indivíduo que foi todo esquartejado, serrado aos bocados.


E há casos quase cómicos, como um de há cerca de dois anos: o indivíduo veio de uma das ex-colónias portuguesas e é parado no aeroporto de Lisboa porque trazia o pai e os irmãos dentro da mala. Resolveu vir viver para cá, vai ao cemitério, desenterra-os, mete-os na mala e traz. O cheiro era tal que fiquei com ele no gabinete não sei quanto tempo. Esses restos continuam comigo.


ed. 24 de Janeiro de 2008 - Texto de Pedro José Barros / Pedro Farias

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